AMIGO INFIEL
AMIGO INFIEL
Nelson
Marzullo Tangerini
Por volta de 1956, quando eu
começava a dar meus primeiros passos sobre os dois pés, apareceu, em minha
casa, em Piedade, um cidadão chamado Evilásio Marçal.
Ator menor no teatro brasileiro,
ele queria que meu pai, Nestor Tangerini, lhe desse um monólogo novo, inédito,
para ele apresentá-lo em palcos de São Paulo.
Tangerini lhe disse que não
tinha nada de inédito, embora mantivesse na gaveta o monólogo “O buraco”, ainda
sem registro.
Evilásio insistiu para que o
autor em questão raspasse o fundo da gaveta para saber se, ali, havia algum
texto rascunhado, ainda não alinhavado.
Ingênuo, o teatrólogo lhe disse,
então, que tinha um monólogo, mas não o liberaria porque o trabalho ainda não
estava registrado.
“- Tenho medo de que alguém
possa tomar posse do texto”. – declarou Tangerini.
Fingindo lealdade, Evilásio
argumentou, então, que era um homem honesto, que Tangerini podia confiar
nele, que não trairia o amigo.
E o escritor confiou nele.
Deixou o monólogo com Evilásio.
Dias depois, eis que o monólogo
aparece num programa de humor televisivo como sendo de outro autor, o que levou
Tangerini a acreditar que “O buraco” fora vendido para um famoso escritor da
época.
O referido monólogo dizia mais
ou menos isto: “Nascemos por um buraco, temos dois buracos para ver, dois
buracos para respirar, dois buracos para ouvir, um buraco para comer e beber, um
buraco para liberar a água que bebemos, um buraco para liberar o que comemos e,
por fim, quando morremos, um buraco nos espera”.
Outros textos de Nestor
Tangerini, mesmo registrados, foram plagiados por falsos humoristas. Algumas
vezes conseguimos espaço na imprensa para denunciar este ou aquele plagiador.
Mas, com o correr do tempo, nossa família pregou no deserto, defendendo um
autor que não se entregou diante de tantas adversidades por que passou em toda
a sua vida.
Nestor Tangerini era deficiente
visual e físico: não tinha a vista direita (perdeu-a quando, aos 7 anos,
tentava salvar a vida de um amigo que se afogava num açude, em Alagoas) e o
braço esquerdo (perdeu-o em desastre de ônibus, em Benfica, em janeiro de 1940,
acidente noticiado em jornais do mês, no Rio de Janeiro).
Ainda, hoje, em 2024, já com 69
anos, luto para salvar sua obra e seu nome, para que não caia no esquecimento,
não me importando se a imprensa fechou as portas para nós.
Publiquei, de teimoso que sou,
com o suor do meu trabalho, parte da obra de meu saudoso pai: livros de
sonetos, de trovas, de letras de músicas e de crônicas. Livros de caricaturas
cubistas e de esquetes (alguns deles encenados pela Companhia Teatral Jardel
Jércolis), podem ser publicados futuramente, se a morte não me pegar de
surpresa.
Nestor Tangerini foi, também, um
poeta da 2ª Geração Parnasiana, ignorada pela crítica literária que se deixou contaminar
pela algazarra modernista, que, inclusive, caçoou dos fluminenses Joaquim
Manuel de Macedo (romancista romântico) e Alberto de Oliveira (poeta parnasiano).
Quando iniciava sua carreira
como teatrólogo de Revistas, na antiga Capital Federal, por volta de 1932,
Nestor Tangerini encenou, no Teatro Renascença, no “Meuer”, ainda com y, a sua
peça “Pra deputado”, da qual só se salvou o
monólogo, discurso genial de um político, elaborado por Tangerini, que ora publicamos:
“Desnecessário seria dizer a não ser
somente quando, que em matéria de principalmente, nada melhor do que não resta
a menor dúvida, donde se conclui que mais vale um homem todavia nunca do que
outro jamais sem comparação alguma”. E o público, idiotizado, aplaude o
canastrão.
Enfim, foi minha mãe, Dinah
Marzullo Tangerini, ex-atriz de teatro da Companhia Alda garrido, quem me
contou sobre a visita inesperada de
Evilásio, que fingia ser amigo de meu pai, narrada, por mim, no início desta
crônica.
O título desta crônica, Amigo
Infiel, é uma homenagem a Aldo Cabral (pseudônimo do grande compositor Antônio Guimarães Cabral), um “Amigo Fiel” de
Nestor Tangerini.
As belas canções de Cabral
deviam ser regravadas, pois fazem parte da História da Música Popular
Brasileira.
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